quinta-feira, 7 de julho de 2016

Loucuras tradutórias

Acho que não seria exagero dizer que quem gosta de traduzir gosta de ler. Por mais que generalizações sejam complicadas e perigosas, que me atire o primeiro dicionário o tradutor ou a tradutora que nunca sentiu prazer com as palavras. Deixando a discussão sobre ser tradutor literário ou técnico para outro post, neste quero primeiro apresentar o trabalho de deixar qualquer um boquiaberto que Alison Entrekin vem empreendendo. Em resumo, ela se dispôs a traduzir para o inglês o nosso tão suis generis romance Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Quem leu sabe que ela é louca. Quem não leu, no mínimo desconfia. E quem quiser saber mais detalhes, leia aqui.
E para quem ficou com preguiça de ler o link, vou traduzir aqui um parágrafo que muito me capturou:
“Traduzi-lo [Grande sertão: veredas] é infinitamente mais difícil, já que a infeliz tradutora não pode trapacear, ela não pode pular um trechinho que não compreende direito, como fazem os leitores, só porque ela pode. Ela precisa destrinchá-lo palavra por palavra, examiná-lo de todos os ângulos, consultar dicionários, glossários, dicionários analógicos, perguntar para cinco especialistas diferentes o que eles entendem de algo e obter cinco respostas diferentes – e isso somente para certificar-se de que ela entendeu! E aí há a questão de passar isso para o inglês.”
Já deu para sentir que podemos confiar em seu trabalho. Mas toda essa discussão, além de servir de propaganda para o trabalho da Alison, foi apenas preâmbulo para uma reflexão e uma pergunta. Segue a reflexão: recentemente me desafiei a traduzir um conto de Edgar Allan Poe, “The Tell-Tale Heart”, simplesmente porque das traduções que li em língua portuguesa, nenhuma me satisfez em termos da aliteração da consoante oclusiva alveolar desvozeada |t|, que simula a batida do coração. Chamei minha tradução de “O coração conta-tudo”. De brinde, uma confissão: não fiquei satisfeito com o resultado. E agora de volta à reflexão, creio que haja muitos tradutores e muitas tradutoras que têm, de modo secreto ou não, algum texto que gostariam de traduzir.
Eu mesmo tenho outros. Semana passada fui a uma exposição do escultor Farnese de Andrada no Palácio das Artes, em Belo Horizonte. Havia também alguns textos de Hilda Hilst e, claro, a tradução deles para o inglês. A primeira coisa que fiz foi lê-los, texto-fonte e texto-alvo, e o primeiro pensamento foi: “Não ficou bom, não é isso que ela escreveu em português. Para quem entrego meu cartão?”. Uma segunda confissão: sou apaixonado por HH, ela é daquelas autoras que volta e meia releio. Discussões sobre falante nativo à parte, gostaria de traduzir Hilda Hilst.

E agora, finally, a pergunta: colegas de profissão, quais textos vocês gostariam de traduzir? Comentem!

terça-feira, 28 de junho de 2016

Fim de semestre

Neste primeiro semestre de 2016, tive a oportunidade de cursar a matéria ‘Poéticas da Tradução nas Literaturas Modernas e Contemporâneas: da semiótica da cultura à poética da tradução’, ministrada pela professora Dra. Anna Palma na Universidade Federal de Minas Gerais. Como o nome já diz, a trajetória teve início com a semiótica, sobre que lemos Toury, Lotman, Ivan-Zohar e Peirce, e passou para a tradução, com leituras de Benjamin, Derrida, Schleiermacher, Lefevere e culminando com Meschonnic e Berman.
Estes dois últimos autores foram bastante levados em consideração com relação ao trabalho do tradutor em relação à poética do texto. Como desafio, então, decidimos fazer uma tradução em conjunto de um conto de Julio Cortázar, “Continuidad de los parques”. A escolha do idioma de origem se deu pela presença de uma colega colombiana, ou seja, nativa da língua espanhola, que fez uma leitura do texto para a turma para que todos pudessem sentir o ritmo. Passamos para uma leitura mais atenta, em que pausávamos e debatíamos palavras e significâncias. Segue o resultado:

Continuidad de los parques, de Julio Cortázar [publicado por primera vez en la segunda edición del libro Final del juego (1964)]

    Había empezado a leer la novela unos días antes. La abandonó por negocios urgentes, volvió a abrirla cuando regresaba en tren a la finca; se dejaba interesar lentamente por la trama, por el dibujo de los personajes. Esa tarde, después de escribir una carta a su apoderado y discutir con el mayordomo una cuestión de aparcerías, volvió al libro en la tranquilidad del estudio que miraba hacia el parque de los robles. Arrellanado en su sillón favorito, de espaldas a la puerta que lo hubiera molestado como una irritante posibilidad de intrusiones, dejó que su mano izquierda acariciara una y otra vez el terciopelo verde y se puso a leer los últimos capítulos. Su memoria retenía sin esfuerzo los nombres y las imágenes de los protagonistas; la ilusión novelesca lo ganó casi en seguida. Gozaba del placer casi perverso de irse desgajando línea a línea de lo que lo rodeaba, y sentir a la vez que su cabeza descansaba cómodamente en el terciopelo del alto respaldo, que los cigarrillos seguían al alcance de la mano, que más allá de los ventanales danzaba el aire del atardecer bajo los robles. Palabra a palabra, absorbido por la sórdida disyuntiva de los héroes, dejándose ir hacia las imágenes que se concertaban y adquirían color y movimiento, fue testigo del último encuentro en la cabaña del monte. Primero entraba la mujer, recelosa; ahora llegaba el amante, lastimada la cara por el chicotazo de una rama. Admirablemente restañaba ella la sangre con sus besos, pero él rechazaba las caricias, no había venido para repetir las ceremonias de una pasión secreta, protegida por un mundo de hojas secas y senderos furtivos. El puñal se entibiaba contra su pecho, y debajo latía la libertad agazapada. Un diálogo anhelante corría por las páginas como un arroyo de serpientes, y se sentía que todo estaba decidido desde siempre. Hasta esas caricias que enredaban el cuerpo del amante como queriendo retenerlo y disuadirlo, dibujaban abominablemente la figura de otro cuerpo que era necesario destruir. Nada había sido olvidado: coartadas, azares, posibles errores. A partir de esa hora cada instante tenía su empleo minuciosamente atribuido. El doble repaso despiadado se interrumpía apenas para que una mano acariciara una mejilla. Empezaba a anochecer.
    
    Sin mirarse ya, atados rígidamente a la tarea que los esperaba, se separaron en la puerta de la cabaña. Ella debía seguir por la senda que iba al norte. Desde la senda opuesta él se volvió un instante para verla correr con el pelo suelto. Corrió a su vez, parapetándose en los árboles y los setos, hasta distinguir en la bruma malva del crepúsculo la alameda que llevaba a la casa. Los perros no debían ladrar, y no ladraron. El mayordomo no estaría a esa hora, y no estaba. Subió los tres peldaños del porche y entró. Desde la sangre galopando en sus oídos le llegaban las palabras de la mujer: primero una sala azul, después una galería, una escalera alfombrada. En lo alto, dos puertas. Nadie en la primera habitación, nadie en la segunda. La puerta del salón, y entonces el puñal en la mano, la luz de los ventanales, el alto respaldo de un sillón de terciopelo verde, la cabeza del hombre en el sillón leyendo una novela

 Continuidade dos parques, de Julio Cortázar [publicado pela primeira vez na segunda edição do livro Final del juego (1964)]

       Havia começado a ler a novela uns dias antes. Abandonou-a por negócios urgentes, voltou a abri-la quando regressava de trem ao campo; se deixava interessar lentamente pela trama, pelo desenho dos personagens. Essa tarde, depois de escrever uma carta ao seu procurador e discutir com o capataz uma questão de parceria, voltou ao livro na tranquilidade do escritório que dava para o parque de carvalhos. Acomodado em sua poltrona favorita, de costas para a porta que poderia perturbá-lo como uma irritante possibilidade de intrusões, deixou que sua mão esquerda acariciasse uma ou outra vez o veludo verde e se pôs a ler os últimos capítulos. Sua memória retinha sem esforço os nomes e as imagens dos protagonistas; a ilusão novelesca o ganhou quase em seguida. Gozava do prazer quase perverso de ir se desgarrando linha a linha do que o rodeava, e sentir a cada vez que sua cabeça descansava comodamente no veludo do alto encosto, que os cigarros seguiam ao alcance das mãos, que mais além das vidraças dançava o ar do entardecer sob os carvalhos. Palavra por palavra, absorvido pela sórdida disjuntiva dos heróis, deixando-se ir até às imagens que se concertavam e adquiriam cor e movimento, foi testemunha do último encontro na cabana do monte. Primeiro entrava a mulher, receosa; agora chegava o amante, com a cara marcada pelo chicotear de um galho. Admiravelmente estancava ela o sangue com seus beijos, mas ele rechaçava as carícias, não havia vindo para repetir as cerimônias de uma paixão secreta, protegida por um mundo de folhas secas e caminhos furtivos. O punhal se aquecia contra seu peito, e debaixo latejava a liberdade velada. Um diálogo anelante corria pelas páginas como um arroio de serpentes, e se sentia que tudo estava decidido desde sempre. Mesmo essas carícias que enredavam o corpo do amante, como se querendo retê-lo e dissuadi-lo, desenhavam abominavelmente a figura do outro corpo que era necessário destruir. Nada havia sido esquecido: desculpas, azares, possíveis erros. A partir dessa hora, cada instante tinha seu emprego minuciosamente atribuído. O duplo repasso impiedoso se interrompia apenas para que uma mão acariciasse uma face. Começava a anoitecer.

    Sem mirar-se já, atados rigidamente na tarefa que os esperava, se separaram na porta da cabana. Ela devia seguir pela senda que ia ao norte. Da senda oposta ele se voltou um instante para vê-la correr com os cabelos soltos. Correu por sua vez, refugiando-se nas árvores e moitas, até distinguir na bruma malva do crepúsculo a alameda que levava até a casa. Os cães não deveriam latir, e não latiram. O capataz não estaria a essa hora, e não estava. Subiu os três degraus do pórtico e entrou. Do sangue galopando em seus ouvidos lhe chegavam as palavras da mulher: primeiro uma sala azul, depois uma galeria, uma escada atapetada. Do alto, duas portas. Ninguém no primeiro quarto, ninguém no segundo. A porta do salão e, então, o punhal em mão, a luz das vidraças, o alto encosto de uma poltrona de veludo verde, a cabeça do homem na poltrona lendo uma novela.

                                                                   Fim


Participaram desta tradução Anna Palma, Diogo Rufatto, Alexandre Magalhães, Rafael Silva, Ayda Blanco Estupiñán, Allan Casteluber, Jéssica Tamietti, Ênio Lacerda e André Meyerewicz.

segunda-feira, 11 de abril de 2016

Traduzindo gêneros

No meu último texto para este blog, abordei o aspecto da questão de gênero no uso do ‘singular they’. A reflexão continuou latente no meu fazer tradutório, e percebi que tenho uma grande tendência a traduzir certas palavras, especialmente as que se referem a profissões, optando por um determinado gênero. Pergunto aos/às colegas de profissão: como vocês costumam traduzir palavras como ‘soldier’, ‘nurse’, ‘teacher’, ‘doctor’, ‘professor’?
Se alguém está lendo este texto e não conhece a língua inglesa, cabe dizer que as palavras não têm gênero, são neutras nessa língua. Então ‘a doctor’ pode ser um médico, mas também uma médica (sem contar o título acadêmico doutor ou doutora, que discuto a seguir). Tive uma surpresa bem grande quando estava lendo um romance e uma personagem era ‘a doctor’. Imediatamente, imaginei um homem. Logo mais, descobri tratar-se de uma mulher. Fui pego pelas minhas construções estereotípicas!
É verdade que em geral os textos acabam revelando se se trata de um homem ou de uma mulher, aí é só voltar e ajustar, caso tenhamos traduzido errado. Mas o que dizer dessa construção social que perpassa de geração em geração sobre o que é de um gênero e o que é de outro, inclusive nas profissões?
Sei que há enfermeiros e sei também que em número menor que enfermeiras, mas esse fato é suficiente para explicar por que tenho a tendência de ler ‘nurse’ e traduzir enfermeira? Ou ‘secretary’? E quando se trata de ‘soldier’ a coisa complica ainda mais; além da tendência a escrever soldado, o mais óbvio equivalente feminino, soldada, não está registrado, por exemplo, no dicionário Aulete Digital como feminino de soldado. Aliás, há uma profissão um tanto esquizofrênica nesse argumento, pois é majoritariamente exercida ou pelo menos designada a mulheres, enquanto a palavra é masculina: modelo.
Uma língua não se muda por decreto, é um organismo vivo e quem manda é povo, mas alguém se lembra da polêmica de ‘presidenta’? Já ouvi o argumento de que governador também não teria feminino, mas soou menos estranha aos ouvidos a palavra governadora. E de onde surgiu governanta?
Seguindo nessa linha, dizemos uma professora doutora ou uma professora doutor? Professora mestre ou professora mestra? Bacharel ou bacharela?
Essa tendência ideológica não é exclusividade da língua de Camões. A de Molière, pátria de tantas feministas, ainda apresenta uma série de profissões que não tem um equivalente feminino, por exemplo: ‘un ingénieur, un président directeur général, un commandant de bord, un chef de chantier, un procureur, etc.’ (exemplos retirados daqui). Ainda, em francês gramatical corretíssimo, deve-se dizer ‘Madame le President, Madame le préfet’, em detrimento do artigo feminino ‘la’. O que estaria por detrás disso?

Já cantaram “This is a man’s world”. Pois eu digo que the world is our oyster.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Singular they – como traduzir?

A American Dialect Society escolheu como palavra do ano de 2015 o pronome they utilizado no singular. Para quem está lendo este texto e não fala inglês, trata-se de um pronome de terceira pessoa do plural que não marca gênero. Muitos usuários da língua inglesa já utilizavam o they para se referir a uma terceira pessoa no singular, mas sem marcar gênero. Os gramáticos, contudo, condenam tal uso. Em artigo, The Washington Post traz o seguinte exemplo: “Everyone wants their cat to succeed”, além de anunciar que adotou esse uso em seu guia de estilo em 2015.
Ben Zimmer, linguista e colunista do Wall Street Journal, disse que essa vitória também simboliza que a cultura mainstream passa a reconhecer e aceitar pessoas transgênero e de gênero fluido, algumas das quais rejeitam pronomes tradicionais.
De fato, temos que comemorar. Em seguida, precisamos arregaçar as mangas e encontrar uma forma de traduzir esse they no singular sem detrimento da intenção de não marcar gênero. Está cada vez mais comum o uso do símbolo @ para não marcar gênero nesta nossa língua tão aficionada pelos padrões binários (amig@, e já vi até amigue ou amigx). É uma tentativa, mas particularmente não gosto, não sei como pronunciar e sempre engasgo na leitura, o que raramente é a intenção de quem escreve.
Já me deparei com algo parecido ao traduzir o livro Zuzu, o carro que tinha medo da estrada, em que havia uma personagem que era um carro menina. Em resumo, a solução que encontrei foi a que acabei de citar, utilizar o termo carro menina.
Retomando o exemplo acima, fica fácil em português: “Todo o mundo quer que seu gato tenha sucesso”. O pronome concorda com o objeto, é simples. Mas vamos lá, e se a sentença fosse: “Everyone wants their friend to succeed”? Como traduzir esse friend e esse pronome? Em geral, opta-se pelo masculino no português, que é utilizado como neutro. Ou, se o contexto indicar, friend vira amiga. Mas como bem salientou Zimmer, pode ser que o texto esteja referindo-se a alguém que rejeita os pronomes tradicionais. E agora, José?
Se você, colega linguista (ufa, colega não marca gênero, mas tradutor/tradutora sim, então optei por colega linguista), tiver alguma sugestão ou solução, aguardo seu comentário!



Baseado no artigo “Sorry, grammar nerds. The singular ‘they’ has been declared Word of the Year”, disponível em https://www.washingtonpost.com/news/wonk/wp/2016/01/08/donald-trump-may-win-this-years-word-of-the-year/